3 de novembro de 2006

Elogio à diferença

(...) A riqueza genética é feita da diversidade. Parece claro que esta constatação vai além do campo da biologia: : a riqueza de um grupo é feita “de seus motins e de seus mutantes”, segundo a expressão de Edgard Morin. Trata-se de reconhecer que o outro nos é precioso na medida em que ele é diferente. E isto não é uma moral qualquer resultante de uma opção gratuita ou de uma religião revelada. Trata-se exatamente da lição que nos dá a genética.

Será isto pregar a tolerância? Que palavra feia! (...)Tolerar é aceitar da boca pra fora, é, de forma negativa, não proibir: isto pressupõe uma relação de forças onde aquele que domina consente a não fazer uso do seu poder. Aquele que tolera se sente bem por tolerar, aquele que é tolerado se sente duplamente negligenciado, pelo conteúdo daquilo que ele representa ou daquilo que ele professa e pela sua incapacidade de o impor. A intolerância, autodefesa do fraco ou do ignorante, é certamente uma marca de infantilidade, mas a tolerância, concessão dada pelo poderoso seguro de si, não é mais do que somente um primeiro passo na direção do reconhecimento do outro. Outros passos são necessários, para que se chegue ao amor das diferenças.

“Se eu difiro de você, longe de te lesar, eu te aumento e enriqueço”, escreve Saint-Exupery. Esta evidência, todos os nossos reflexos a negam. Nossa necessidade superficial de conforto intelectual nos leva a tudo organizar em tipologias (semelhantes) e a julgar segundo a conformidade destas. Mas a riqueza está na diferença.

Muito mais profundo, mais fundamental, é a necessidade de ser único, para “ser” verdadeiramente. Nossa obsessão é de ser reconhecido como uma pessoa original, insubstituível; nós o somos realmente, mas nós nunca experimentamos este sentimento de forma tão forte como quando as pessoas a nossa volta o reconhecem. Que melhor e mais belo presente pode nos dar “o outro” senão o de reforçar nossa unicidade, nossa originalidade sendo diferente de nós? Não se trata de atenuar os conflitos, de apagar as oposições, mas de se admitir que esses conflitos, essas oposições devem e podem ser benéficas a todos.

A condição é que o objetivo não seja a destruição do outro, ou a instauração de uma hierarquia, mas a construção progressiva de cada um. O choque e desacordo, mesmo violento, é benéfico: ele permite a cada um de se revelar na sua singularidade. A competição, ao contrário, é destrutiva: ele acaba por situar cada um dentro de uma ordem imposta, dentro de uma hierarquia necessariamente artificial e arbitrária.

A lição primeira da genética é que os indivíduos, todos diferentes, não podem ser classificados, avaliados, ordenados : a definição de “raças” só pode ser arbitrária e imprecisa. A interrogação sobre o “menos bom” e o “melhor” é sem resposta. A qualidade específica do Homem, a inteligência, da qual ele tanto se orgulha, escapa, na sua maioria, à nossas técnicas de análise. As tentativas passadas de “aperfeiçoamento” biológico do Homem foram por vezes simplesmente ridículas, e freqüentemente criminosas ao olhar dos indivíduos, e devastadoras para o grupo.

Por sorte, a natureza dispõe de uma maravilhosa robustez face aos malfeitos do Homem: o fluxo genético continua sua obra de diferenciação e de manutenção da diversidade, quase insensível aos atos humanos.

Esta reflexão pode ser transposta da genética para a cultura: as civilizações que nós secretamos são maravilhosamente diversas e esta diversidade constitui a riqueza de cada um de nós. Graças a uma certa dificuldade de comunicação, esta heterogeneidade das culturas pode subsistir por longo tempo; mas, é claro que ela corre o risco de desaparecer rapidamente.

Assim que se constata a qualidade das relações humanas, da harmonia social dentro de certos grupos que nós chamamos “primitivos”, podemos nos perguntar se o alinhamento feito a partir de nossa cultura não será uma catástrofe. Será que ainda há tempo para se evitar o nivelamento das culturas? Poderemos preservar a diversidade das culturas sem pagar um preço exorbitante?

Que o leitor retenha simplesmente esta lição da biologia : nossa riqueza coletiva é feita de nossa diversidade. O “outro”, enquanto indivíduo ou sociedade, nos é precioso na medida em que ele é diferente de nós.

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Albert JACQUARD, Trechos de Eloge de la différence, Paris, Seuil, 1978, pp. 206-209.

(texto lido pela professora Suely no último dia do curso sobre Inclusão, 28 de outubro)

leia um outro textinho do mesmo autor: Albert Jacquard

Os direitos humanos devem ser vistos como a conseqüência de nossa lucidez sobre a especificidade de nossa espécie. Essa lucidez nos faz compreender que somos os únicos seres vivos capazes de se tornarem pessoas, ou seja, de alcançar a consciência de ser. Essa metamorfose só pode se realizar graças às trocas com os outros. Uma sociedade que respeite os direitos humanos deve portanto, antes de mais nada, permitir a cada um a participação nessas trocas. A finalidade da educação é o encontro com os outros.


retirado de: http://www.ambafrance.org.br/abr/label/label34/paroles.html



O belo texto "Zumbi canta na Curva do Sino" de Washington Araújo também cita Jacquard. Veja em:
http://www.bahai.org.br/racial/zumbi.html

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